Dia 8 de Março, Adelci presente

A tia-avó que eu não conheci é, na verdade, mais uma das minhas irmãs.

Hoje é dia internacional da mulher. Eu pensei em pesquisar de novo a origem da data, as propagandas vergonhosas, as promoções piores ainda, os maridos descarados e sem uma gota de vergonha na cara, os dados das delegacias de mulher, enfim… Todas essas informações tenebrosas que seriam suficientes pra gente pelo menos pensar duas vezes antes de associar essa data a uma caixa de bombom e um buquê de flores. (Ou um almoço em família feito por ela, a mulher).

Mas não. Em vez de reproduzir todas essas informações facilmente encontradas no Google, eu decidi contar uma história que não está registrada em lugar nenhum, embora se repita tanto. História da minha família, que é cheia de mulheres que são fortes porque foi só essa a opção que lhes restou. Foi sempre isso que a vida lhes exigiu.

Ontem, dia 7 de março, minha avó Ozelina veio junto dos filhos jantar na minha casa. Enquanto eu cozinhava, ela, sentada à mesa, descascava uns dentes de alho pra me ajudar e contava histórias que eu nunca tinha escutado.

Dona Ozelina (a Zéli) saiu da Bahia onde deixou enterrada uma irmã de sangue.  No interior do interior, sua irmã morreu provavelmente de cólica menstrual, por ser esse um problema considerado “não muito sério”. As cólicas fortes são, ainda hoje, companheiras pontuais das mulheres da família Faria. E essa noção de que cólica é uma frescura de menina também não mudou tanto assim desde aqueles tempos na Bahia. A medicina, pra nossa sorte, é que deu alguns passos a mais. Pena não podermos dizer o mesmo sobre o trabalho, que devemos frequentar com ou sem essa dor, e sobre os colegas que no geral não se incomodam a não ser pra fazer chacota…

Isso já seria uma senhora história triste. Minha avó tinha uns 6 anos, e se lembra de ver o caixão sangrar. Mas a história que eu quero contar é ainda mais triste, sobre outra tia-avó que eu não tive chance de conhecer. Adelci.

Adelci era irmã de criação da minha avó. Veio com a família quando todos tomaram conhecimento do milagre do Paraná: corria em Mairi, cidade em que moravam, que aqui no sul “se puxava dinheiro de rastelo”. Minha família nunca foi gananciosa, era uma questão de necessidade. E a vida de Adelci, no meio dessa busca desesperada, não por dinheiro, mas por trabalho, foi seguidamente marcada pelo ódio histórico às mulheres, por essa noção de que nós não valemos grande coisa.

Começou antes dela (como, na verdade, começou muito antes de todas nós). A mãe de Adelci, irmã da minha bisavó, teve seu casamento arranjado com um homem “castrado”, palavras de minha avó. Esse homem arranjou o casamento com o meu tataravô, porque precisava de uma mulher “que o zelasse”, e nada mais. Até minha avó, uma senhora, entende como isso era absurdo. Mas foi assim com a mãe de Adelci, exigiu-se que ela vivesse o absurdo. E sem dizer uma só palavra, casou-se.

Com o tempo, apareceu um rapaz por quem a mãe de Adelci ficou interessada. E ele por ela. Era o primo do primo de um primo, me parece, e foi dessa união que nasceu Adelci.

Não é preciso dizer como a vida das duas, mãe e filha, estaria marcada desde então. O marido traído agrediu severamente sua esposa, que teve de sair de casa “com uma facada no bucho”, e foi obrigada a voltar para a casa dos pais carregando no ventre essas duas “vergonhas”. A filha e o corte.

Passado um tempo do nascimento de Adelci, o marido traído resolveu que aceitaria a esposa novamente. Mas só ela. Não a filha, fruto da traição. Assim, outra vez sem que a mãe de Adelci fosse consultada, seu pai convocou uma reunião entre a família e decidiu que minha bisavó, Enedina (Dindinha), tia de Adelci, ficaria responsável por criar a menina.

Mãe e filha foram separadas, ainda na Bahia. E o desligamento total veio mais tarde. Adelci se tornou irmã de minha avó e veio para o Paraná, tendo visto sua mãe raras vezes depois disso.

Aos doze anos, Adelci ficou “formada”. Era uma moça muito bonita, dessas que chamavam atenção. Nessa época, minha bisavó, Dindinha, notou algo de diferente na menina. Um estômago “muito alto”, um enjôo fora do comum, deveria ir ao médico…

Ao 12 anos, a menina Adelci estava grávida. De um homem já casado e pai de família.

Se hoje prender pedófilos e estupradores é raro, você imagine naquele tempo… Adelci foi chamada, pela própria mãe de criação, de safada, de sem vergonha. Meu bisavô foi tirar satisfação com o pai da criança que estava por vir, e o que ouviu? Que era ela, uma menina de 12 anos, a culpada. (Como eu disse, tudo isso começou e perdura desde muito antes de nós.)

Ficou decidido, nessa conversa de homens, que ele teria que “aproveitar” Adelci. Um termo, graças à deusa, já abolido, que significa que eles se casariam…

Segundo minha avó, uma vez obrigada a se casar, Adelci nunca mais cozinhou, só vivia suja aquela que havia sido uma moça tão bonita e caprichosa, não fazia nada para o marido. Nem para si mesma.

Minha mãe, entretanto, lembra que essa sua tia algumas vezes capturava vagalumes e guardava em um pote…

Adelci, mãe aos 12 anos, foi carregada para o Mato Grosso e lá morreu enforcada num suposto suicídio. A família nunca foi avisada e não se sabe a quem as duas meninas de Adelci foram entregues. Mais tarde, seu marido contou a alguém que ela havia se suicidado e, mais tarde ainda, ele mesmo foi preso e solto, nessa que é uma das histórias que minha avó, também muito menina, acompanhou sendo a mais velha da família, sem nunca entender.

Esse dia 8 de março é dia de engolir a seco essa história que também fala um pouco de como eu mesma vim ao mundo. Com essa e tantas outras marcadas no passado.

Se não tivesse sido morta pelo marido (porque, suicídio ou não, o culpado da morte de Adelci foi ele), ela seria hoje minha tia-avó. Ainda assim, o que eu sinto nesse 8 de março é que perdi, não uma ancestral, mas uma irmã. Como tantas outras que a gente perde arrancadas de nós. Adelci, como sua mãe, não pôde nunca falar. Como sua mãe, foi recriminada por fazer sexo e, no caso específico de Elci, esse sexo de que é culpada foi, na verdade, um estupro.

Pra minha felicidade, na minha família essas histórias vêm acontecendo um pouco menos com o tempo. Mas todas nós continuamos escutando, a essas e muitas outras, sempre como um alerta e como um exemplo. Seja forte. Resista. O pior pode, sim, acontecer. Não ceda.

Ser Adelci não deve ter sido tarefa fácil, e ser mãe de Adelci, e mãe da mãe de Adelci… Ser filha de Adelci, então, nós nunca saberemos como é, pois não sabemos sequer onde elas estão.

Mas eu sei bem como é sobreviver como Ozelina e Miranilde e Maria José e Arleide e Letícia e Isabela (e Flávias, e Anas, e Lucélias, e Jaquelines e tantas e tantas de nós) que temos, antes de tudo, essa obrigação, de resistir e sobreviver. De não calar, para lembrar tantas Adelcis que viveram antes de nós e vivem hoje ainda obrigadas só a aceitar: um homem casado que lhe rouba os vagalumes, um homem castrado que lhe rouba a filha e as netas. O machismo, afinal, que nos rouba a vida.

8 de março não é dia de flores, almoços ou bombons. E nem é dia de dar parabéns à Adelci ou a qualquer mulher que suporta, por pura falta de opção, a sua condição. Hoje é dia de desejar que Adelci, e tantas outras, não fossem obrigadas a só resistir resistir resistir, mas que pudessem, em vez disso, viver o suficiente pra contarem elas mesmas as suas próprias histórias.

Dia 8 de março. Adelci presente!

Twin Sisters - Chidi Okoye
Twin Sisters – Chidi Okoye

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